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Vamos aprender o que é brincar?

Vamos aprender o que é brincar?

A neuropsicóloga Mariana Lucas explica a importância de brincar no desenvolvimento infantil.

Atualizado a 17/01/2023
12 MINUTOS DE LEITURA
Vamos aprender o que é brincar

Décadas de investigação e experiência demonstram que brincar é uma ferramenta poderosa para o desenvolvimento das crianças. A brincar, elas aprendem a interagir, a comunicar, a respeitar os outros e a conhecer o mundo que as rodeia.

Mariana S. Lucas, neuropsicóloga do Centro de Neurodesenvolvimento e Comportamento da Criança e do Adolescente do Hospital da Luz Lisboa, tem-se dedicado a este tema nas suas consultas e na sua investigação clínica. Oiça o Podcast Hospital da Luz, em que nos fala de como brincar é importante para crianças e adultos. E do que significa brincar em tempos de pandemia.

O que é brincar, na perspetiva da neuropsicologia? E por que é tão importante no desenvolvimento infantil?

Brincar parece ser algo muito simples, algo natural para qualquer criança e qualquer adulto. Quando pergunto às pessoas o que é que isto significa para elas, a maioria responde ‘divertir-me’.

Na verdade, aquilo que parece ser tão simples não deixa de ser um conjunto de comportamentos altamente complexos, que nos abre portas infinitas de aprendizagem, de forma muito espontânea e nem sempre consciente, mas que nos permite preparar para a vida.

Regra geral, todas as pessoas deveriam saber brincar. Mas nem sempre lhes são oferecidas as condições para que a brincadeira, nas suas vidas, possa ser desenvolvida de forma saudável. Brincar é aprender. Esta aprendizagem vai sendo desenvolvida desde muito cedo, ainda em bebé, na interação com os adultos. E assume papéis diferentes, em função do nível de desenvolvimento da criança.

Numa primeira fase, a brincadeira é mais funcional: a criança procura perceber como é que as coisas à sua volta funcionam ou para que servem. Uma colher deve ser para levar à boca. Um carro é para empurrar. Uma bola é para rolar. Esta é ainda uma fase de exploração primária dos brinquedos. Se ao lado da criança nesta fase tivermos um adulto, que vai dizendo como é que os brinquedos se chamam, introduzindo inclusive interjeições de alegria, sucesso e entusiamo, tudo isso terá um input cognitivo que vai organizando a criança na brincadeira e lhe vai abrindo as portas para aprendizagens muito importantes.

É claro que a brincadeira não tem de ser feita apenas com objetos. Aliás, a brincadeira começa na exploração que o bebé faz do seu próprio corpo. Inicialmente, até, os bebés fazem aquilo a que chamamos uma brincadeira mais desocupada – pegar num objeto e levá-lo à boca, atirá-lo, agarrar no pé ou na mão… É uma brincadeira solitária, uma pesquisa solitária sobre para que serve cada uma daquelas coisas que o bebé consegue agarrar. Com isso, a criança está a desenvolver competências sozinha, sem haver a necessidade de o adulto participar e interagir. Contudo, se a criança, ao explorar o brinquedo olha para o adulto, isto já é introduzir um momento de interação na brincadeira. No fundo, a brincadeira diz-nos muito sobre o quanto é que esta criança está atenta ao meio que a rodeia.

A brincadeira solitária é muito importante, mesmo em crianças mais velhas. É o que permite a existência de momentos para criar, para imaginar situações diferentes, para inventar o que pode fazer com aqueles objetos. É também fundamental, por outro lado, para que aprenda a viver com os momentos de aborrecimento, para não estar sempre dependente de estímulos externos para conseguir estar bem.

Brincar é aprender porque, afinal, quando a criança está a explorar os objetos, está a dar significado ao mundo que a rodeia, está a perceber que aquele objeto tem uma determinada textura, tem um nome, que permite fazer muitas coisas. Em suma, a brincadeira abre as portas para o desenvolvimento da linguagem, para a capacidade de resolver problemas. Treina-nos para a flexibilidade cognitiva e para lidar com o imprevisto.

Há fases de aprendizagem na brincadeira?

Espera-se que a brincadeira assuma determinadas características em função da fase de desenvolvimento em que a criança está.

  • Numa fase inicial, a brincadeira é a exploração dos objetos: “Para que é que isto serve?”
  • Depois, a brincadeira tem objetivos. É uma fase mais sofisticada, do ponto de vista cognitivo: é a brincadeira do faz-de-conta, a brincadeira simbólica. Beber a fingir de uma chávena vazia, fingir que somos um bombeiro ou um super-herói… A brincadeira implica um nível de criatividade e de abstração que é muito importante para percebermos em que fase do desenvolvimento está a criança.
  • Finalmente, a fase da brincadeira com regras. Implica lembrar as regras, envolver os outros e ter consciência de que é necessário ajustar o comportamento a essas regras, colocarmo-nos no lugar do outro.

 

Todas estas fases de brincadeira, embora surjam normalmente em diferentes fases do desenvolvimento da criança, podem coexistir, estar presentes de forma simultânea na brincadeira da criança.

Brincar com os outros: em que momento a criança começa a interagir?

Os bebés iniciam a exploração do mundo de forma solitária, quando ingressam no infantário a exploração enriquece-se numa perspetiva de observador, a olhar para as outras crianças, a perceber também como é que elas brincam. Não quer dizer que estejam já interessados na interação. Mas estão a apreender o ambiente e as experiências dos outros.

Por volta dos dois anos, começam a aproximar-se dos pares, a revelar prazer na companhia. Mas isso não significa que haja já uma interação consciente; é o que chamamos de brincadeira paralela. O contacto com outras crianças é, nesta fase, a aquisição do sentido de que pode haver ali parceiros de brincadeira, ainda que estejam, eles próprios, a afinar as suas próprias competências ao nível do brincar.

Depois desta brincadeira paralela, começa a fase da chamada brincadeira associativa. A criança partilha o mesmo espaço de brincadeira, mas ainda não partilha o objetivo dessa brincadeira. Não é brincar com o outro, mas brincar ao lado do outro.

A brincadeira cooperativa é o passo seguinte. Estamos agora mais perto dos três anos. A criança já se relaciona com o outro tendo objetivos comuns. É nesta fase que a criança recorre às tais competências do faz-de-conta, da criatividade, do colocar-se no papel do outro, de perceber que o outro também tem escolhas e desejos, que nem sempre são os mesmos que os seus…

Como é que a COVID-19 afetou a brincadeira das crianças?

De muitas maneiras. Antes de mais, os sucessivos confinamentos trouxeram uma série de contextos disfuncionais para a brincadeira: as escolas fecharam e, só por isso, as crianças deixaram de ter oportunidade de estar tanto tempo com os seus pares, de ter momentos de brincadeira espontânea dentro do contexto de escola. Por outro lado, ao ficarem fechados em casa, onde estavam adultos em teletrabalho e com responsabilidades profissionais, isso trouxe um aumento enorme do stress parental, de uma falta de resposta às necessidades de brincadeira das crianças.

Essa situação teve depois, como danos colaterais, não só dificuldades no relacionamento entre pais e filhos, como um enorme aumento do tempo de exposição a ecrãs, fazendo com que os momentos de espontaneidade e criatividade, de que as crianças precisam para desenvolver padrões de brincadeira, tivessem reduzido imenso.

Brincar mais diante do ecrã está a alterar os padrões normativos do que é o desenvolvimento infantil?

Antes de mais, é importante dizer que ninguém duvida do potencial da brincadeira em videojogos. A tecnologia veio para ficar e não podemos fingir que ela não faz parte das nossas vidas.

Mas temos de perceber que a brincadeira online envolve sempre estímulos externos sucessivos altamente complexos, que estão feitos para ‘agarrar’ as crianças, fazendo com que não tenham de lidar com momentos de inatividade, de aborrecimento.

Por outro lado, passar demasiado tempo a brincar com videojogos implica menos tempo para outras oportunidades de aprendizagem que a brincadeira mais espontânea cria.

Finalmente, na fase da brincadeira cooperativa, adquirem-se competências de reciprocidade socio-emocional. Ora, o ecrã não envolve essa reciprocidade, pelo que a brincadeira, feita exclusivamente online, fica comprometida na sua função para o desenvolvimento infantil.

Sinais de alerta: o meu filho não brinca como as outras crianças da sua idade

Quando é que a brincadeira pode ser um sinal de alarme? As crianças exploram os brinquedos de formas variadas. Todas precisam de repetir gestos e comportamentos para aprender, para perceber como é que a brincadeira funciona.

A observação de uma criança a brincar dá-nos imensa informação sobre o nível de desenvolvimento em que ela se encontra. Imaginemos que está a bater com a colher no prato ou na mesa. Numa primeira fase, este comportamento é o normativo: a criança está a ver que som é que a colher faz quando bate na mesa. Mas se ela está só a bater com a colher e nem sequer está disponível para brincar ou para olhar para outros brinquedos, ou para procurar outras coisas que estejam perto de si, isso pode ser um sinal de que há ali uma perceção do uso da colher que não é o seu uso funcional.

Se isto acontecer de forma momentânea e no dia seguinte já não se verificar, não tem qualquer valor clínico.

Imaginemos que a única coisa que a criança faz com um carrinho é virá-lo ao contrário e rodar as rodas. Ora, este já não é o uso funcional deste brinquedo. E nem sequer é perceber como é que as rodas funcionam… Se já passou essa fase da brincadeira e continua a retirar algum prazer desse rodopiar constante, pode ser importante estar atento. Tudo depende da duração, frequência e função que uma exploração de um brinquedo está a cumprir. Isto, sim, pode ser um alerta, ainda que, isoladamente, não signifique que estamos perante uma qualquer perturbação de neurodesenvolvimento.

Por outro lado, se associada a esta exploração pouco funcional vem, por exemplo, uma impermeabilidade ao adulto que se aproxima para brincar, se não há uma procura do contacto visual do outro para o envolver na brincadeira, se não há demonstração dessa vontade de mostrar o que se conseguiu construir na brincadeira e, finalmente, se a brincadeira continua a ser solitária aos dois/três anos de idade, mesmo sendo funcional na relação com os brinquedos, então pode ser necessário investigar o que se passa.

Como disse, a observação da criança a brincar e a perceção de que ela não está a dar o uso funcional aos brinquedos, ou que não passa para níveis mais sofisticados de brincadeira, pode permitir-nos perceber se existe algum tipo de atraso no desenvolvimento.

Esta avaliação é feita a partir de testes psicométricos, que nos dão indicações sobre se há ou não algum comprometimento cognitivo que faça com que aquela criança não perceba para que servem determinados brinquedos. E que nos podem indicar que ela precisa de intervenção precoce, feita, à partida, sempre por uma equipa multidisciplinar.

Conselho aos pais

É fundamental estar com os filhos e proporcionar-lhes momentos de segurança, para que eles possam brincar à vontade.

E brinquem com eles! Mas não intervenham muito, não guiem a brincadeira. Brincar é uma parte essencial do desenvolvimento infantil.

 

 

Consulte o artigo original “Vamos aprender o que é brincar?” no site Hospital da Luz.

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